Carta aberta aos seminaristas do Seminário Interdiocesano de São José, por ocasião da conclusão de uma etapa formativa

joao pereira lamegoOlá a todos,
Como sabem este foi o meu último ano no Seminário Interdiocesano. Foram seis anos cheios de tudo: de alegrias, de conquistas, de crescimento, de amizades, mas também de esforço, cansaço, momentos de desânimo e de “noites escuras” (como diria a Santa Tresa de Calcutá). Olhando para trás, não posso afirmar que tudo foi azul… claro que também houve cinzentos. Mas tudo isso faz parte do caminho!

Quando em 2014 cheguei a Braga, tudo foi novo para mim. Quase “caí de para-quedas” no Seminário, ou talvez tenha mergulhado mesmo de cabeça num mundo diferente daquele que estava habituado. Foi ter de prescindir de muitas coisas: prescindir do tempo livre que geria como queria (vocação de S. Pedro), prescindir de estar com os amigos que tinha para passar a viver com (ao início) desconhecidos, prescindir de estar com a família e passar a sentir saudades de casa, prescindir do escutismo que era a menina dos meus olhos, prescindir de seguir uma vida universitária vulgar com tudo o que faz parte da vida académica (vocês sabem)… Sim, foi prescindir do vulgar para abraçar o diferente… Não vos arrependais, Ele supera isso tudo!

Confesso que não foi fácil adaptar-me aos horários e rotinas do Seminário. Por exemplo, durante o primeiro ano a Liturgia das Horas era um “bicho de sete-cabeças” que os colegas mais velhos, na brincadeira, gostavam de desmarcar para nos obrigar (a nós mais novos) a perceber como se “domava tal criatura”. Acordar cedo e deitar, muitas vezes, já no dia em que ia acordar, é algo que, certamente, todos nós experimentamos. O grego e o latim exigem estudo, todos os dias… e às vezes faziam-me arrancar cabelos… depois disso, nasceram no seu lugar os meus muitos cabelos brancos. Mas, certamente, que vós conseguireis fazer o curso “com uma perna às costas”.
Como já partilhei com alguns de vós, os primeiros tempos não foram fáceis. Os mais velhos guardavam uma certa distância de nós caloiros e nós, a nosso turno, guardávamos-lhes “respeito”. As coisas foram mudando. Começou a mudar antes de mim. Também eu procurei mudar isso quando chegou a minha vez de ser veterano e acolher os novos caloiros. Espero ter conseguido, ter feito com que se sentissem verdadeiros membros de uma família, podendo contar com os irmãos mais velhos. Não deixeis que isso desapareça: criai uma comunidade de verdadeiros discípulos-irmãos. Temos todos o mesmo valor diante de Deus, não haja entre vós distinções de classes. Procurai ajudar-vos e estar disponíveis uns para os outros. Como diz o grande sábio Costa Santos: “O que eu tenho e sei já ninguém mo tira. Se o poder partilhar com outros, melhor…”. Lembrai-vos que tereis a comunidade que quiserdes e trabalhardes por construir! Esforçai-vos por evitar intrigas, grupos rivais, falar mal uns dos outros nas suas costas, marginalizar alguém, acusar-vos uns aos outros, criar mau ambiente... Dizei o que tiverdes a dizer nos lugares apropriados: nas reuniões de comunidade ou diretamente a quem de direito, sempre numa perspetiva de corrigir com caridade e crescer em conjunto. “O que destrói uma comunidade é o ´mal de língua´” (filme Sefarad, 2019). Cada um acuse apenas os seus pecados diante de Deus e peça discernimento para ajudar os outros a reconhecer os seus.

O caminho foi sendo feito: um passo de cada vez. Não o fiz sozinho! Fi-lo com a companhia e ajuda de Jesus, dos irmãos de caminhada, dos formadores e de todos aqueles que rezam por nós. Felizmente as nossas vocações ainda são amadas por muita gente de bom coração nas nossas dioceses, não duvideis disso! Há gente a rezar muito e a dar muito por nós! Lembrai-vos dessas pessoas, pois também sois fruto das suas orações.

Não foram poucas as vezes de adormecer a chorar junto do “Jesus escondido” (como Lhe chamava carinhosamente S. Francisco Marto). Não foram poucas as vezes de “resmungar” com Ele e com os formadores. Não foram poucas as vezes a ir bater à porta de algum colega para desabafar ou do diretor espiritual para procurar caminho. Se a paciência se esgotasse, Deus e algumas pessoas já a tinham esgotado comigo!

Sim, entre os colegas o Seminário fez nascer grandes amizades. Dizem que da tropa se levam camaradas para a vida, pois do Seminário levam-se irmãos para a eternidade. Quando digo isto, recordo todos aqueles com quem me fui cruzando no Seminário: os que já são padres, vós que continuais a vossa caminhada, aqueles que descobriram que o seu caminho era outro e os formadores das várias equipas que cuidaram da minha formação… Acreditai: levo-vos a todos no coração, para a vida e para a eternidade! Todos, cada um a seu jeito e na sua condição, me ajudaram a crescer de alguma forma! Estou grato por Deus vos ter colocado a todos na minha vida! Espero ter-vos sempre próximos.

Aproveitai para crescer! Na primeira reunião de comunidade que houve quando cheguei ao Seminário, quando nos perguntaram quais eram as nossas perspetivas para o percurso de Seminário, eu respondi: “crescer como homem e como cristão”. Foi o que tentei fazer. Não descureis a vossa formação. Pode ser difícil e às vezes aborrecido, mas precisamos de padres que “saibam o que dizem e que vivam o que sabem”. Não descureis o vosso crescimento cristão. Pode parecer secundário e até inútil, mas precisamos de padres fervorosos apaixonados por Cristo, pela Igreja e pelos irmãos.

E vocês devem estar a pensar: “Este deve achar-se bom e está para aqui a dar lições!” Não! Nada disso! Eu não sou em nada melhor do que vós, sou um convosco. Acabei um percurso formativo mas ainda tenho tanto para aprender e por crescer no caminho da santidade! Estou bem consciente disso. Mas, o ideal que vos proponho não sou eu: é o Jesus Cristo dos Evangelhos! Não desanimeis com o meu fraco testemunho ou com as minhas incoerências, ou seja, com as de quem for… Olhai sempre e sobre tudo para Cristo! N´Ele não há contradição, n´Ele não há incoerência entre a sua mensagem e a sua vivência! Amai-O! Não tenhais medo de O amar a sério! Ele nunca falha, mesmo que tropeceis e sejais infiéis, Ele permanecer-vos-á sempre fiel (S. Paulo)! Levantai-vos, reconciliai-vos e voltai para Ele! Acreditai no Seu amor e deixai-vos apaixonar por Ele. Vivei ao Seu lado, na sua casa! Aprendei a sua humildade, a sua misericórdia, a sua compaixão, a sua paciência, a sua sobriedade, a sua disponibilidade para servir, o seu carinho pelos doentes e necessitados, a sua vontade de curar e dar vida… Podia continuar a enunciar os atributos do Filho de Deus, mas vós sabeis bem mais sobre isso do que eu: sois melhores teólogos do que eu. Procurai, acima de tudo, ser também teófilos.

Chego ao fim de seis anos de Seminário mas com a mesma abertura de sempre à vontade de Deus! Não me imponho ao serviço do Reino, antes me disponho a ser chamado para a ceifa. Quero que se faça de mim o que Ele quiser. Faça-se em tudo a Sua vontade e tudo seja feito para maior glória de Deus. Sempre disse a todos os que comigo fizeram caminho de Seminário, após beijar as suas mãos, quando pela primeira vez Cristo se quis fazer, por seu intermédio, presente no meio de nós em Corpo e Sangue: “Lembra-te que o sacerdócio que recebeste é um grande dom! Ninguém é merecedor de tão grande graça de Deus! Tudo é dom, tudo é graça! Recebeste-o de graça, dá-o de graça e com humildade”. Se um dia fordes ordenados padres, assim seja a vossa vontade e a de Deus, eu espero lá estar e partilhar da vossa alegria. Não vos admireis que eu vos diga essas mesmas palavras! É assim que eu vejo a participação no sacerdócio ministerial de Cristo: como a maior das bênçãos. Se eu vier a ser ordenado padre e alguma vez for rude e soberbo no exercício do ministério, lembrai-me dessas mesmas palavras e não hesiteis a corrigir-me com caridade. Precisamos de padres de coração manso e humilde.

Bom, não vos quero cansar mais.

Quero apenas que sintais que o que vos escrevo é dedicado a cada um de vós. Sei que as coisas nem sempre correram bem, peço-vos desculpa pelas vezes em que falhei. Digo-vos com toda a sinceridade que penso em todos e apenas levo as melhores recordações do que melhor vivi com cada um de vós. Peço-vos que, por caridade, recordeis sempre o melhor de mim. Prometo-vos que rezarei por vós, para que não se perca nenhum daqueles que o Pai me deu por irmão (Oração sacerdotal de Jesus). Sim, falo para ti, amado irmão! Peço-te que rezes também por mim, nem que seja uma Avé-Maria quando rezas o terço.

Estou sempre disponível para ti, na medida das minhas possibilidades e debilidades.

Um grande e apertado abraço. Saúde!

Com amor cristão,
João Miguel Pereira
Resende, 21 de Maio de 2020

  • Visualizações: 1897