O senhor das moscas - William Golding - 1954
Fizemos tudo o que os adultos fariam.
O que é que correu mal?
Continuando na senda da literatura britânica, a sugestão literária apresentada hoje chama-se O senhor das moscas (“Lord of the flies”). Esta obra, escrita por William Golding (1911 - 1993), pretende apresentar uma imagem, quase ao estilo mitológico, da sociedade.
Esta obra foca propositadamente algumas das questões antropológicas mais relevantes em qualquer sociedade tais como liderança e governo, relação entre sociedade civil e sociedade militar, decisões tomadas racionalmente ou por motivos passionais, obediência ao líder ou golpe de estado, necessidade de regras ou anarquia. Em última análise, foca as referências pelas quais se constrói uma sociedade: a satisfação pessoal, um bem maior que exige sacrifício, etc. William Golding destaca-se da realidade específica do seu dia-a-dia para se pôr uma questão que resume toda esta obra: enquanto crianças, há um adulto que mantém a ordem e estabelece as regras; enquanto adultos, quem estabelece regras ou mantém a ordem? E em prol de quê? E com que autoridade? Seria particularmente interessante um confronto entre este livro e, por exemplo, a República, de Platão.
O senhor das moscas narra a história de um grupo de rapazes cujo o avião onde viajavam se despenha junto a uma ilha desabitada. Cedo se dão conta de que não existem adultos para os orientar. E assim, começa a narrativa que descreve a sociedade que se forma neste grupo rapazes que têm de governar-se a si próprios.
- Não existem adultos de todo?
- Acho que não.
O primeiro grande símbolo apresentado no livro é a concha. Este objecto, descoberto por Ralph que se deixa fascinar pelo seu aspecto, é usado para convocar reuniões de grupo e confere a quem o tem na mão o direito à palavra durante essas reuniões. Assim, é sempre tido como o símbolo da ordem. O desrespeito à concha constitui o primeiro acto de rebelião que a pouco e pouco degenera numa recusa total em aceitar quer qualquer tipo de legitimidade que a concha possa dar quer a autoridade do líder.
Depois de se rebelarem contra o líder, o grupo dissidente oferece uma cabeça de porco em sacrifício para a besta que acreditavam existir. Devido à putrefação, esta cabeça de porco começa a atrair moscas. Este constitui o símbolo nuclear da história: a besta imaginada é o senhor das moscas (em hebraico, Belzebu), a quem o grupo desordeiro presta culto. Simon, o personagem introvertido que representa a ponderação e sabedoria que daí resulta, apercebe-se, ao olhar para a cabeça de porco, o nível que vai atingir a desordem do grupo rebelde.
Simon observa a cabeça de porco. Imagem do filme O Senhor das moscas (1990).
Esta narrativa, obriga o leitor a confrontar-se com questões intemporais, já analisadas por muitos filósofos, cujas respostas, pelas mais variadas razões, nunca convenceram universalmente. No entanto, torna-se ainda mais aliciante uma análise do ponto de vista teológico de onde surgem respostas mais desafiantes a partir do momento em que a noção de um Ente Supremo passa a estar implicado: assim como o adulto está acima da criança, assim Deus está acima do adulto. De facto, continua a existir em muitas sociedades contemporâneas a presença do elemento religioso na tomada de posse de um alto cargo de governo. Por exemplo: presta-se o juramento para a tomada de posse da presidência do Estados Unidos da América tendo uma mão sobre a Bíblia; também, a coroação do monarca do Reino Unido é feita por um líder religioso, deixando claro que o poder governativo é delegado por Deus no rei ou na rainha.
Olhando para a questão do mal, Golding destoa da visão tradicional da existência de bestas demoníacas exteriores à pessoa, fazendo ver no episódio do culto do grupo rebelde, que a besta existe, na verdade, dentro de cada um dos rapazes presentes no ritual da dança em torno à cabeça de porco, episódio que culmina com o homicídio de Simon.
Talvez exista a besta… talvez sejamos só nós.
Esta visão constitui uma crítica feita por Golding à obra A ilha de Coral (1857), onde o autor, Ballantyne (1825-1894), sustenta a tese de que a génese do mal é exterior à pessoa. Na doutrina católica podemos conciliar esta disputa, vendo em O senhor das moscas os efeitos do pecado original que deixa a pessoa com uma certa inclinação para o mal, e vendo em A ilha de Coral os efeitos do mal que pode objectivamente vir de um agente externo.
Este é apenas um exemplo das muitas questões que a obra O senhor das moscas levanta. Pela profundidade de pensamento, alidada a um estilo retórico fluido, este livro reveste-se de tal calibre que é considerado a obra prima de William Golding, tendo contribuído substancialmente para a decisão de lhe ter sido atribuído o prémio Nobel da literatura em 1983.
William Gondilng (1911-1993).
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